terça-feira, 1 de setembro de 2015

O Cacto


Aquele cacto lembrava os gestos desesperados da estatuária:
Laocoonte constrangido pelas serpentes,
Ugolino e os filhos esfaimados.
Evocava também o seco Nordeste, carnaubais, caatingas...
Era enorme, mesmo para esta terra de feracidades excepcionais.

Um dia um tufão furibundo abateu-o pela raiz.
O cacto tombou atravessado na rua,
Quebrou os beirais do casario fronteiro,
Impediu o trânsito de bondes, automóveis, carroças,
Arrebentou os cabos elétricos e durante vinte e quatro horas
                               [privou a cidade de iluminação e energia:

- Era belo, áspero, intratável.


                                                                Manuel Bandeira - 1925

segunda-feira, 24 de agosto de 2015

Epitáfio


Espírito
é Vida
Ele flui por entre
a morte de mim
ininterruptamente
como um rio
sem medo
de tornar-se
o mar

                   Gregory Corso

NOITE


Sorria em cada esquina do caminho
tentando lembrar do dia em que estávamos mais mortos que a sede dentro de nós mesmos por justiça

O medo jorrava dos ladrilhos sujos que conectavam as celas sem portas dos nossos corações

Coçando a cabeça o cabelo escuro do fim dos nossos dias em vez de voar ao vento estava sujo e sem brilho a alma já cansada procurava um grito

no vento gelado dos elevados

nos mendigos sem teto mortos de fome comendo cacos de vidro dentro de tubos de cachaça

fumando soquetes de lâmpadas com canetas bique enrolados em cobertores marrons cor de terra batida...dessa terra que se agita … que grita e grita...

O ar que sorria era a tortuosa vitrine de uma ideia antiga...vontade de voar...

sem planador sem avião da janela do pensamento

Nascia um momento ímpar sem multiplicador comum

Arrastando o corpo sem vida

ouvi multidões e vomitei palavrões em vão busquei a vida em tantas ilusões!

Trôpego dormi enrolado no jornal embaixo do banco … na praça

inferno em vida … o melhor é dormir

Trôpego abri a janela do avião no apartamento enrolado na fumaça

e dormi... dormi......


                                                   Garnov 05/2013

ALÔ


É desastroso ser um cervo ferido.
Eu estou muito ferido, os lobos rondam
e tenho meus fracassos também.
Minha carne ficou presa no Gancho Inevitável!
Quando criança vi todas as coisas nas quais não queria me
transformar.
Serei a pessoa que não desejava ser?
Aquela pessoa que-fala-sozinha?
Aquele de quem os vizinhos caçoam?
Serei eu aquele que, nos degraus do museu, dorme de lado?
Estarei usando a roupa do cara que falhou?
Sou um sujeito lunático?
Na grande serenata das coisas,
serei a passagem mais cancelada?
                                                                                                                                                                           
                                                           Gregory Corso

sábado, 22 de agosto de 2015

E então, que quereis?


Fiz ranger as folhas de jornal
abrindo-lhes as pálpebras piscantes.
E logo
de cada fronteira distante
subiu um cheiro de pólvora
perseguindo-me até em casa.
Nestes últimos vinte anos
nada de novo há
no rugir das tempestades.


Não estamos alegres,
é certo,
mas também por que razão
haveríamos de ficar tristes?
O mar da história
é agitado.
As ameaças
e as guerras
havemos de atravessá-las,
rompê-las ao meio,
cortando-as
como uma quilha corta
as ondas.

                                               Maiakóvski (1927)

quinta-feira, 20 de agosto de 2015

Recomeço


Contanto que possamos viver
A cada dia
Milagrosamente...
Como plantas
Que brotam do asfalto
Bruto

Contanto que possamos cantar
Milagrosamente
Como os pássaros
Libertos
Das amarras do mundo

Contanto que possa te olhar nos olhos...
E transpor os portões
As linhas - os limites
De tudo que temos medo
Do fim e do começo
De nós mesmos

Contanto que estejas comigo...
O fim será
             Recomeço


                                       Garnov 03/2011